Abolição da escravidão: o 13 de maio e a farsa da liberdade
- Gabriel Barros
- 13 de mai.
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No imaginário nacional, o 13 de maio de 1888 é frequentemente lembrado como uma data libertadora: o dia em que a escravidão foi oficialmente extinta no Brasil pela assinatura da Lei Áurea, pela princesa Isabel. No entanto, ao romantizar essa data, ignoramos uma verdade incômoda: a abolição foi tardia, incompleta e descomprometida com a justiça social. O fim da escravidão legal não significou o fim da opressão racial — ao contrário, ela apenas se transformou.
O protagonismo negro apagado pela narrativa oficial
É preciso abandonar a narrativa ingênua que enxerga a princesa Isabel como uma “redentora”. A liberdade conquistada pelos negros foi, na verdade, resultado de séculos de resistência: fugas, revoltas, quilombos e mobilização popular. Ainda assim, esses protagonistas seguem esquecidos nos livros didáticos e nos discursos oficiais. Como afirma o historiador João José Reis (2010), foram os próprios negros os verdadeiros agentes da abolição.
A abolição sem reparação
Além disso, o Estado brasileiro, ao abolir a escravidão, nada fez para reparar os séculos de violência e exploração. Não houve reforma agrária, nem acesso à educação, nem políticas de integração social. Pelo contrário, a elite passou a investir em mão de obra europeia, excluindo os libertos do mercado formal. Como destaca Florestan Fernandes (1978), a abolição ocorreu dentro da lógica de um capitalismo que apenas trocou o regime escravocrata por um sistema de exclusão racializada.
Lilia Schwarcz (2019) afirma que o racismo estrutural foi naturalizado no Brasil sob a falsa ideia de democracia racial. O 13 de maio, nesse sentido, é mais um símbolo de apagamento do que de celebração. A data marca a assinatura de uma lei curta, com apenas dois artigos, que libertava os escravizados — mas não oferecia nenhuma alternativa digna de existência.
Heranças da abolição inconclusa
Em pleno século XXI, ainda vivemos os efeitos dessa abolição inconclusa. A população negra é maioria nas estatísticas de pobreza, de violência policial, de subemprego e de encarceramento. Isso não é coincidência — é herança. É por isso que devemos reforçar que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, ou seja, trabalhar ativamente por uma reparação histórica.
Portanto, o 13 de maio deve ser lembrado, sim — mas não como símbolo de libertação, e sim como lembrete de que a verdadeira liberdade ainda está por vir. A luta do povo negro não terminou com a assinatura da Lei Áurea. Ela continua nas periferias, nas universidades, nos movimentos sociais e nas ruas. Cabe a nós, como sociedade, decidir se continuaremos a celebrar uma falsa liberdade ou se enfrentaremos, de fato, o passado para construir um futuro mais justo.
O papel do sistema jurídico na manutenção da opressão
Além da negligência social no pós-abolição, é preciso destacar o papel central que o sistema jurídico brasileiro desempenhou — e continua desempenhando — na manutenção do racismo estrutural. Durante séculos, o direito não apenas permitiu a escravidão, como serviu para legitimá-la. O ordenamento jurídico colonial e imperial reconhecia o ser humano negro como propriedade, e isso se traduziu em práticas legais profundamente desumanizantes.
O Código Criminal de 1830, por exemplo, ao não abolir explicitamente os castigos físicos, permitia que senhores continuassem a punir seus escravizados à revelia do sistema judiciário. A Justiça, na prática, servia mais aos interesses dos senhores de escravos do que ao ideal de equidade. Como observa o jurista Antônio Risério (2000), havia uma “cidadania seletiva” na formação do Estado brasileiro: o direito protegia os brancos e criminalizava os negros, mesmo quando libertos.
Mesmo após a abolição, o aparato jurídico continuou sendo ferramenta de exclusão. Com a entrada da República e a promulgação do Código Penal de 1890, práticas culturais e de sobrevivência da população negra — como a capoeira, o candomblé e a “vadiagem” (estar desempregado) — foram criminalizadas. Segundo Silvio de Almeida (2019), o direito operou como uma máquina de marginalização, reforçando estereótipos e construindo o negro como uma ameaça à ordem pública.
Essa seletividade penal, herdada do período escravocrata, permanece evidente nos dias atuais. O encarceramento em massa da juventude negra, a violência policial nas periferias e a dificuldade de acesso à Justiça por parte da população negra não são desvios, mas consequências de uma estrutura jurídica que historicamente serviu à manutenção do privilégio branco.
Se queremos reavaliar o 13 de maio com honestidade, é fundamental reconhecer que a abolição legal da escravidão foi apenas um passo simbólico dentro de um sistema que continuou operando em benefício das elites. O racismo jurídico — invisível para muitos, mas sentido cotidianamente por milhões — é uma das maiores barreiras à igualdade real no Brasil.
A crítica ao sistema jurídico é, portanto, uma crítica à própria fundação do Estado brasileiro. A liberdade formal sem acesso à cidadania plena é apenas uma ilusão. É preciso desconstruir os fundamentos racistas do direito brasileiro e construir uma Justiça verdadeiramente inclusiva, comprometida com a equidade racial e com a reparação histórica.

Referências
Almeida, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
Fernandes, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Ática, 1978.
Mattos, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
Reis, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Risério, Antônio. O povo brasileiro: formação e sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Schwarcz, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
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