Utilizando de títulos sensacionalistas para causar descredibilidade ao Poder Judiciário do Brasil, a imprensa brasileira só pode querer duas coisas: atenção ou golpe
Na quinta-feira de 7 de setembro de 2023, o ministro do STF André Mendonça rejeitou um recurso apresentado pela Defensoria Pública da União e manteve a decisão do STJ que autorizou o réu da ação, o desembargador Jorge Luiz Borba, a voltar a ter contato com Sônia Maria de Jesus, uma mulher preta e surda de 50 anos que trabalhava na casa do magistrado e que foi resgatada de lá por uma operação da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho com fortes indícios de estar submetida a trabalho análogo à escravidão. Sônia, que não sabia se comunicar através da Libras e vivia na casa do desembargador desde criança, continua a morar no mesmo lugar após a deliberação.
Uma atitude tão controversa do ministro Mendonça claramente iria causar movimentações efervescentes na mídia brasileira — o que de fato aconteceu. “STF autoriza volta de mulher a casa de desembargador suspeito de trabalho análogo à escravidão”, intitulou a Folha de S. Paulo. O Metrópoles publicou: “Trabalho escravo: STF autoriza desembargador suspeito a ver vítima”. O portal Terra e o Estadão publicaram a mesma matéria: “STF autoriza desembargador de SC a ver mulher mantida sob escravidão e o retorno dela à casa dele”. Todas essas matérias detalham de quem partiu a decisão em seu conteúdo, apesar de todos os títulos trazerem à tona uma curiosa questão ao dizer que “o STF autorizou” numa polêmica causada por uma das tão discutidas decisões monocráticas.
A decisão unilateral que Mendonça proferiu no caso Sônia não é incomum no modus operandi do Supremo Tribunal Federal e, naturalmente, é passível de discordâncias e de recurso interno, onde outros ministros iriam votar na manutenção da decisão. É errado, então, dizer que “o STF” fez algo aqui, quando a decisão do ministro foi monocrática? Certamente não: o ministro Mendonça é um representante legítimo da casa e pode, sim, falar por ela em suas decisões antes de serem eventualmente discutidas pelos outros ministros. Perigosamente, porém, a escolha de substantivos próprios nesses casos pode influenciar estruturalmente a opinião pública sobre a mais alta instância do Poder Judiciário brasileiro e seus integrantes, que estão cada vez mais com os holofotes da imprensa virados para si, num jogo sensacionalista que a grande mídia sabe muito bem como e para quê pode utilizá-lo.
Nesse sentido, destaca-se a crônica do ministro Alexandre de Moraes. Sua atuação contra os avanços absurdamente inconstitucionais da extrema-direita o proporcionou críticas severas desse meio, o destacando dos demais ministros e, dessa forma, vinculando quase que automaticamente seu nome ao Supremo Tribunal Federal no senso comum da população. Assim, utilizando-se por vezes da lógica “se Alexandre de Moraes fez algo ‘errado’, a culpa é dele; se outro ministro o fez, a culpa é do STF”, como evidenciado, o ministro Alexandre de Moraes foi escolhido pela imprensa como rótulo para seus ataques contra o Supremo que, na melhor das hipóteses, tentam atrair mais leitores indignados com a “ditadura do Judiciário”.
Assim, o ministro Alexandre de Moraes protagoniza nominalmente uma quantidade crescente de títulos de matérias da imprensa, quase nunca com um teor positivo ou sequer neutro. Em 19 de junho de 2024, a Folha de S. Paulo publica: “Moraes censura reportagens sobre acusação de agressão feita por ex-mulher de Arthur Lira”. O verbo “censura”, utilizado cada vez mais junto ao nome do ministro pela grande mídia principalmente com a recente suspensão do X (ex-Twitter), transmite aos leitores um viés completamente antidemocrático de sua decisão. O verbo também foi empregado, no mesmo caso, pela Folha de S. Paulo e pela Gazeta do Povo (onde o ministro “reviu a censura” posteriormente), além de outros jornais.
Outros casos relacionados podem ser citados, já que qualquer movimentação do ministro, por mais mínima que seja, é motivo de termos sensacionalistas. “Alexandre de Moraes se irrita com demora da PF em enviar relatório que indiciou Bolsonaro”, anuncia O Globo; “Moraes se irrita e ‘dá bronca’ em advogados do Caso Marielle. Vídeo” e “Moraes se irrita com relatório da PF sobre confusão em Roma”, divulga o Metrópoles; “Alexandre de Moraes se irrita com André Mendonça durante julgamento no STF”, publica o portal Terra; e assim por diante. Em mais uma breve análise, os termos “irrita” e “dá bronca” imputa ao ministro uma personalidade desequilibrada e explosiva. Isso, além de descredibilizar sua atuação, pode resultar em consequências avassaladoras para o futuro do país — e não seria a primeira vez que presenciaríamos algo nesse sentido, vide o papel da imprensa na legitimação do golpe contra Dilma Rousseff perfeitamente colocado no documentário “O Processo”, de Maria Ramos.
É importante que seja ressaltado que qualquer ação de qualquer ministro do STF é passível de contestações de qualquer cidadão: eventuais equívocos podem e devem ser apontados, criticados e recorridos. De qualquer modo, o timbre da grande mídia ao falar do ministro de Moraes e, concomitantemente, do STF como um todo, já é tema de discussão no meio jornalístico, apesar de abafado. Abrindo uma delicada discussão sobre deontologia, o que resta saber à população é se essas acusações indiretas são apenas estratégias de divulgação, apesar dos óbvios efeitos, ou se são propositalmente empregadas para surtirem as consequências que surtem.